quinta-feira, 16 de novembro de 2017

O Mito de Don Juan e o protagonismo social do homem







Don Juan y l'estatua del Comendador.

Fizemos aqui algumas reflexões sobre a solidificação do protagonismo social do homem em detrimento da passividade feminina sob a ótica da obra teatral “El burlador de Sevilla” de Tirso de Molina. A escolha da obra em questão está em sintonia com um recorte temporal e temático, que não visa esgotar as reflexões sobre o tema em épocas e contextos diferentes.
O mito de Don Juan, inaugurado na literatura, por Tirso de Molina no início do século XVII, conhecido como o século de ouro da literatura espanhola, busca efetivar o discurso da moral cristã, onde a monogamia e a repressão dos desejos humanos eram elementos caros para a boa conduta social. A peça de Molina nos dá, no entanto, uma rica contextualização dos papeis sociais do homem e da mulher daquela época.

O protagonismo social do homem na obra de Molina
Tirso de Molina

Para analisarmos a obra devemos entender um pouco sobre seu autor. Tirso de Molina era o pseudônimo de Gabriel Téllez, um frei católico abertamente entusiasta de Lope de Vega. Se destacou na dramaturgia escrevendo peças que tinham sempre a defesa da moral cristã como pano de fundo. Ele teria escrito “El burlador de Sevilla y el convidado de piedra” em 1630. Apesar dessa história ter sido compilada de outros contos e peças mais antigas, atribui-se a Molina a primeira referência escrita dessa peça. É essa obra que pela primeira vez trará à tona o mítico personagem Don Juan, que no decorrer dos séculos posteriores será objeto de diversas releituras e adaptações para contextos sociais diversos, incluindo versões traduzidas para a linguagem cinematográfica com o advento do cinema já no século XX.
Nosso foco, no entanto, é a obra original de Molina, considerando-a como fundadora do mito de Don Juan para a posteridade. Em “El Burlador de Sevilla” Don Juan é um protagonista caricato, sem compromisso com a visão romântica que chegou até nós pelas mãos do poeta britânico Lord Byron. O Don Juan de Molina é um personagem que está estreitamente em sintonia com sua condição privilegiada de um homem com influência na sociedade de Sevilha do século XVII. Sua performance não é de um sedutor apaixonado, mas sim de um enganador crônico que se satisfaz desonrando as mulheres tanto da nobreza quanto as pescadoras mais desprovidas de destaque social. Como podemos notar no verso 1315 da peça.

Sevilla a voces me llama
el burlador, y el mayor
gusto que en mí puede haber
es burlar una mujer
y dejarla sin honor.
(MOLINA, p.35)

Já no início da obra, Don Juan acobertado pela escuridão de um aposento, engana a Duquesa Isabela fingindo ser Duque Octavio, o homem que desejava se casar com ela. Neste episódio, o próprio Duque é preso injustamente pelo ato praticado por Don Juan. Em uma outra oportunidade, Don Juan sofre um naufrágio e é ajudado por uma pescadora de nome Tisbea. Don Juan a seduz e oferece amor eterno e, a pede em casamento, em seguida abandona-a para que viva completamente sem honra. Durante uma conversa com seu amigo, o Marques de Motta, Don Juan descobre que este está apaixonado por sua prima Doña Ana, o burlador não perde a oportunidade de tramar para se aproveitar da bela dama, no entanto, nessa ocasião, Don Juan é impedido pelo pai da vítima, Don Gonzalo, que é morto pelo burlador em uma luta. Isso não o detém, e vai em busca de outra vítima. Aminta é uma lavradora que já estava prometida a Batrício, Don Juan a engana dizendo que seu noivo a abandonara e que ele se casaria com ela.
Como podemos notar, a figura essencial desse mito é o homem. É então somente o homem que detém uma característica ativa enquanto a mulher é totalmente objeto da ação desse homem. Como coadjuvantes, às mulheres só restava confiar nos destinos que os homens lhes concediam. Até mesmo a desonra sofrida por elas não era passível de vingança pelas suas próprias mãos. Sobre isso Paulo Victo Bezerra e José Sterza Justo, ambos da área da psicologia dirão:

[...]são sempre figuras masculinas que protagonizam os diálogos resolutivos. A honra da mulher burlada é apresentada como um problema masculino, no sentido de que, uma vez tirada a honra, é o pai, ou o marido que sofre a degradação social. O grande drama nesse caso é que a mulher ficará imprestável para se casar. E não podemos deixar de enfatizar que foi por isso que Don Juan foi levado ao inferno primeiramente: porque Don Gonzalo tinha a obrigação moral de duelar com aquele que lhe ofendera a honra ao tentar cortejar sua filha. (BEZERRA, JUSTO, 2010, p.6).

O que fica evidente ao analisar essa peça, com o conforto de mais de 300 anos de história ocorridos desde então é a incapacidade das mulheres se emanciparem dentro da rigidez religiosa daquela sociedade. O mito de Don Juan nos permite hoje entender o quanto a coibição da ação feminina era alegórica para o protagonismo social do homem da Espanha do século XVII.

O contexto social da obra.
Don Juan and Haidee- Alexandre Marie Colin

Podemos notar que Don Juan se comportava como um predador, e essa forma de agir é o que dá o tom didático da peça. A honra (honor), como questão de status social, era muito cara para o espanhol do século XVII. E a mulher sem honra não se casaria, sua desonra afetaria toda sua família e sua reputação a condenaria a viver uma vida marginal, seja ela uma nobre ou uma lavradora. Ou seja, mais importante do que o que você é, é a forma como a sociedade te enxerga.  A honra é um elemento fundamental para a vida, pois entre viver uma vida sem honra (honor) e a morte, a segunda opção sempre parecerá mais atrativa. Isso fica evidente no verso 1590.

¡Ay, que me has dado la muerte! ........... .
Mas, si el honor me quitaste,
¿de qué la vida servía?
(MOLINA, p. 43)

Nessa ocasião, Don Gonzalo está agonizando após ser atingido de morte por Don Juan, ao enfrentar o burlador em defesa de sua filha Doña Ana.
Parece-nos claro que a questão primordial para Molina, era efetivar a honra como elemento crucial para a vida em sociedade, uma clara medida de valor que deve ser buscada. No entanto, o que vem a luz em nossa reflexão é o fato de que eram as ações dos homens que definiam a honra das mulheres, enquanto uma mulher desonrada sofreria as mais deprimentes consequências sociais, o mesmo não parecia ocorrer aos homens que as desonravam.
O próprio Don Juan não acreditava que seria punido – ou pelo menos não tão em breve – afinal ele nunca se mostrava cauteloso em suas práticas de burla. Apesar de sempre ser advertido por seu pai e até mesmo pelo seu criado Catalinon. Em várias ocasiões ele simplesmente respondia com sua frase mais celebre: “¡Qué largo me lo fiáis!” (Ainda  uma expressão que expressa sua indiferença em relação a seus atos presentes, pois ainda há muitos anos para ele pensar em se arrepender.
Nesse sentido, a condenação do protagonista ao inferno, é o desfecho que parecia natural desde o início da trama, afinal o propósito de Molina se mostra claro. Mesmo que você viva impune pelas leis dos homens, jamais será negligenciado pelas leis divinas. Dessa forma Don Juan paga o preço pretendido pelo catolicismo, pois é diretamente encaminhado para o inferno sem nem mesmo passar pelo purgatório. Ou seja, á Don Juan nem mesmo é dada a alternativa de se arrepender, como poderiam pretender os adeptos da reforma protestante de Martinho Lutero que à época era motivo de preocupação para os católicos – esse aspecto revela o caráter antirreformista da obra.
As mulheres enganadas por Don Juan são perdoadas ao final do espetáculo e recuperam sua honra, mas, mais uma vez, não mediante sua própria capacidade de lutar por isso, mas porque os homens assim o fizeram. Nesse sentido a obra de Molina perpetua o protagonismo social do homem como sujeito de ação, enquanto a mulher é o objeto que sempre sofre a ação.

Considerações finais.
As mulheres burladas pelo protagonista desempenhavam papéis secundários naquela sociedade, e sua total submissão ao domínio masculino permitiu que Don Juan desempenhasse suas práticas. Don Juan agia movido simplesmente pelo desejo de burla. Todas os seus atos não tinham um propósito que não fosse o de enganar mais uma vítima. Nesse diálogo entre Don Juan e seu criado Catalinon, o burlador é claro:

CATALINON: ¿Al fin pretendes gozar a Tisbea? (890)
JUAN: ..............                .Si el burlar es hábito antiguo mío,
¿qué me preguntas, sabiendo mi condición?
CATALINON: ..........      Ya sé que eres castigo de las mujeres.
(MOLINA, p. 24)

No entanto, todo o contexto social vivido por Don Juan lhe dava certo conforto. Don Juan era aparentado de pessoas influentes na corte espanhola e desfrutava de toda regalia de um nobre. Por outro lado, a passividade feminina na obra, demonstra com clareza, a total dependência destas em relação aos homens. Afinal não foi dada a nenhuma delas a prerrogativa de se vingar do burlador. Quem defendia e se via socialmente no dever de vinga-las eram seus familiares homens.
O mito de Don Juan se torna recorrente na literatura ocidental. No decorrer da história ele foi retomado e transformado de acordo com a corrente ideológica atuante. Se o Don Juan de Molina é contumaz com o período histórico em que vive o autor, o Don Juan de Byron traz uma nova leitura do mito, tornando-o um herói sedutor que ama as mulheres e não mais as engana. Visão somente possível dentro da ótica romântica que idealiza uma mulher desejada, quase sacra. O que a adaptação de Byron revela não é somente uma transformação estética, mas sim uma necessidade de equiparar a mulher e o homem no campo da paixão. Agora Don Juan também poderia ser vítima da beleza feminina. Visão esta, que era impossível na época de Molina e que no século XIX timidamente já encontrava seus algozes dentro do movimento romântico, e no século XX iria se amplificar com os movimentos de emancipação feministas.
Ou seja, a obra de Molina assim como a de Byron, são fotografias de seus momentos históricos e o fato de não ser possível transpor o Burlador de Sevilha de Molina para o século XIX ou XX, revela que, se não desfrutam de um protagonismo social pleno, as mulheres não estão a total mercê dos caprichos masculinos como antes estiveram.


Referências bibliográficas:

  • BEZERRA, Paulo Victor; JUSTO, José Sterza. O Mito de Don Juan e a subjetividade moderna. R. Inter. Interdisc. INTERthesis, Florianópolis, v.11, n.2, p.72-95, Jul-Dez. 2014. Disponível em: Acesso em: 27 de julho de 2017.
  • BEZERRA, Paulo Victor; JUSTO, José Sterza. E se Don Juan fosse uma mulher? Um estudo acerca das transformações do mito. Diásporas, Diversidades, Deslocamentos. 23 a 26 de agosto de 2010.
  • KARDOUS, Paul. A sedução: Don Juan e as mulheres. PUC/SP. São Paulo. 2010.
  • MOLINA. Tirso de. El Burlador de Sevilla. Trinity University, Texas, 2003
  • PEDRO, Claudia Bragança; GUEDES, Olegna de Souza. As conquistas do movimento feminista como expressão do protagonismo social das mulheres. Anais do I Simpósio sobre Estudos de Gênero e Políticas Públicas, ISSN 2177-8248. Universidade Estadual de Londrina, 24 e 25 de junho de 2010. GT 2. Gênero e movimentos sociais – Coord. Renata Gonçalves. 2010.
  • RIBEIRO, Lilian dos Santos Silva. Don Juan e a construção de um Mito em El Burlador de Sevilla. Universidade de São Paulo, Faculdade de Filosofia, letras e Ciências Humanas, departamento de Letras Modernas, Programa de graduação em Literatura Espanhola. São Paulo, 2007.
  • SUÁREZ, Carmen Becerra. El Mito de Don Juan em el Cine. marzo-abril [2011] 259-267 ISSN: 0210-1963. Universidade de Vigo. 2011.


    André Stanley é escritor e professor de História, Inglês e Espanhol, autor do livro "O Cadáver", editor dos blogs: (Blog do André Stanley, Stanley Personal Teacher). Colaborador do site especializado em Heavy Metal Whiplash. Foi um dos membros fundadores da banda de Heavy Metal mineira Seven Keys. Também é fotógrafo e artista digital.

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